Subjetividades

Friday, October 20

Uma Flor de Verdade

O que aconteceu com aquela menina? Aonde ela foi parar?
Aquela que acordava e não se importava se chovia ou fazia sol, porque sabia que, de qualquer maneira, seria ela mesma naquele dia. E a menina sabia, assim como quem sabe o próprio nome, quase que de nascença, que era preciso dançar. Aí ia atender o telefone girando pelo corredor, deixando as paredes tontas. Enfiava o pé no chinelinho e ia de mãos dadas com a mãe para a feira. Ouvia os gritos de “Ô loirinha! Um abacaxi docinho pra você!”, e ia correndo colocar a boca no presente.
Passava horas na casa da sua boneca preferida, que era embaixo da mesa de jantar. Para ela, a casa tinha mais graça de cabeça pra baixo, por isso, andava ao contrário,olhando tudo por entre as pernas, para se perder pelos cômodos. Aquela menina, que abria o pino do carro duas ruas antes de chegar no ballet, tamanho o frio na barriga e a vontade de pular dentro da música.
A menina tinha um segredo. Segredo muito sério, segredo de verdade. Não contava nem pro moço da pipoca e nem pro amiguinho da pracinha. Era uma coisa que fazia escondido, mas que não tinha coragem de falar: ela tinha uma boneca que dava muita raiva. E a raiva da menina pela boneca era tão grande que essa era sempre excluída das brincadeiras. Era posta sentada na prateleira, só para observar o prazer dos outros brinquedos. Não sabia explicar o motivo, mas havia naquela boneca tudo de ruim que a menina não queria ser. Gritava “ você é muito feia! Muito feia! Por isso merece levar palmada!” e batia com toda a força que tinha, a cabeça da boneca contra a parede. Depois, desenhava o sangue-batom pelo corpo da vítima de plástico e devolvia-a para a prateleira. Repetiu a tortura inúmeras vezes, até que um dia, num súbito, começou a chorar com pena da boneca e uma culpa monstruosa tomou conta da menina. Naquele dia, derramou lágrimas tão salgadas que suas bochechas começaram a arder. Foi até a prateleira, abraçou o corpo menor que o seu e pediu as desculpas mais sinceras da sua vida. De noite, arrastou a nova amiga para um jantar na casa da avó, com cadeira especial para a convidada de honra.
Sua bebida favorita era suco de laranja na caneca da “pequena sereia”. Quando tinha salaminho no café da manhã, vinha correndo com suas calças de lã e gritava “ Eba! Shilame, shilame!”, o olho cheio de remela e nó nos cabelos fininhos, fininhos. Quando tinha sopa, dava um jeito de contar uma história muito interessante, entre uma colherada e outra, assim distraia os pais e tomava bem menos. Aí rolava de rir vendo seu pai imitá-la, depois que havia percebido a tática.
Mas o que a menina gostava mesmo era de entrar sozinha no quarto imenso. Pegava, dentro do armário, os lenços coloridos da mãe e se envolvia toda. Subia no salto com cuidado para não cair. Tinha um predileto: o verde musgo. Não era o mais alto, mas era o que tinha o salto mais fino. Parecia que com o mais fino, ela seria mais mulher. Colocava os maiores brincos, pesados e brilhantes. Estava pronta. Era capaz de passar horas se olhando no espelho, apenas a imaginar como seria caber naquilo tudo, preencher todos os espaços de tecido com seu corpo. Sem sobrar nada. Nenhuma folga, nada largo. Para cada pedaço de pano, uma curva do seu corpo.
Um dia ela ganhou um gravador prateado, que tinha sido do avô, e seu maior novo divertimento era gravar qualquer som que escutasse. Durante um dia inteiro, gravou, bem de pertinho, o barulho do que comia ou bebia. O som da água sendo engolida, do biscoito mordido, da bala mastigada. Depois, sentava na cama e escutava tudo, tentando adivinhar o quê era o quê. Brincadeira imbatível.
Uma vez, no banheiro, descobriu que conseguia fazer uma coisa esquisita. Achou estranho, diferente, mas não conseguia parar. Sentava e abria a torneira do chuverinho. Seu corpo todo, depois de um tempo, estremecia e ela tinha q fechar a torneira. Passou a querer fazer isso todo dia, sem saber o motivo.
Era conhecida na locadora por pegar sempre o mesmo filme: “ Convenção das Bruxas”. Adorava a música tema e dizia junto com os personagens todas as falas decoradas. Tinha mais medo da bruxa da casa na árvore que da rainha-bruxa.
Como não tinha medo de fantasmas, a menina inventou um motivo para não conseguir pregar o olho, assustada. Era um mini-duende, que, montado em uma mini-vassoura, percorria o mundo inteiro para ver se todas as crianças estavam mortas. Quando ele passava pela janela da menina, ela prendia a respiração imediatamente. Só não sabia porque na janela dela o duende sempre demorava mais. Ficava imóvel na cama, sem respirar. Quando não estivesse agüentando mais era porque o duende já tinha ido embora.
Quando perguntaram para ela o que achava de ter um irmãozinho, respondeu “ acho uma ótima idéia! Pra gente jogar na lata do lixo!”. Bebia guaraná e odiava bolinha de queijo. A brincadeira favorita era jogar pedra no riozinho. Simples assim. Pedras, de diferentes formatos, no riozinho que cortava o jardim daquela casa.

E aonde foi parar a menina? Não sei mesmo...


1 Comments:

Anonymous Anonymous said...

Juro que queria ler de novo e de novo e de novo. Mas me dá uma nostalgia. Tem sempre sensação de descoberta nos textos. Sensação de estranhamento. Sensação de quem não pára quieta. Todas brutas, um pouco fora de controle. Assim, dá para perceber que a menina ainda está aí. Com este monte de coisas sem jeito que atrapalham ela toda, mas que ela adora. São estas coisas que a dão a ligeira certeza de que ela é diferente. Uma adulta e criança no mesmo corpo. E por isso que é uma pessoa tão difícil de domesticar.

6:54 PM  

Post a Comment

<< Home