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Thursday, November 14

Tecidos mortos

Não é exatamente uma regra, mas acontece com bastante frequência. Estico pernas e pés, os braços rígidos junto ao corpo, buscando uma sensação adormecida. Deitada, permaneço imóvel na cama, produzindo com a mente um cardápio lânguido de sensações. O estado letárgico pode durar minutos ou até horas, como aconteceu na semana passada. 

O doutor tinha dito que era coisa da idade, mas o tempo passou e o hábito ficou. Acordo e busco um prazer esquecido no corpo da primeira infância. Parece estranho dizer assim, mas tornou-se quase um vício. Compromissos são adiados e horários marcados ignorados por causa da obsessão que as vezes toma conta do corpo. Um corpo exausto e ávido, ao mesmo tempo, por sentir coisas novas. Uma pele fina, quase transparente, penugem suave sobre uma leitosa brancura. Se não tomar cuidado, rasga, a mãe falava. Corpo que, querendo ou não, dita a mente. Ou é ao contrário? Pele quente, que ferve à noitinha, dá falta de ar. A barriga parece esticar e encolher, sem muito controle. Engranagens de uma máquina parada. Subia nas pontas dos pés, me falaram, não lembro muito bem. Os dedos finos sentem saudade do chão. 

Sozinha na casa, imagino movimentos no ar. Uma saia que roda, depois volta pra cama e fica parada. Sem me mexer e nem respirar eu fico. Assim.

A casa é boa vazia. É minha - e da Beth Gibbons muitas vezes. Mas quando eles estão aqui é tão gostoso... as vozes, o burburinho que vem da sala, uma fumaça, gargalhadas na minha casa, alegria sob o meu teto. Faço um chá enquanto piso no ladrilho gelado da cozinha. O líquido pelando desce me aquecendo por dentro igual a essas pessoas que me cercam, um abraço coletivo feito de camomila. O corpo aparece mais uma vez e eu sinto que ele está comigo. O frio do chão me sobe até a barriga e sou toda tremeliques na varanda enquanto escuto ele dizer que precisa ir embora, jantar com a família. Uma pena, mesmo. 

Já tinham me dito e agora constato: o corpo tem memória. Lembra do afago mas também do açoite. O simples toque e tudo volta, numa recordação de sentidos cravados na pele. Sinestesia estranha essa de numa noite chuvosa. O pai dizia que era melhor trocar de roupa, toda molhada assim vai ficar gripada, anda. O corpo gélido contrastava com a água quente do chuveiro. Era bom.

Choque térmico sutil, me derreto em células mortas escorrendo pelo ralo. Sinto o perfume de dama da noite invadir o banheiro, inebriada pelo corpo que vejo no reflexo do espelho. 

Body and soul


Tenho acordado ansiosa, uma dor nublada no peito. Sentimento fora de foco, granulado, ainda sem muita definição. Como se algo tivesse sempre na iminência de acontecer. Sinto uma palpitação, um rompante de ânimos e hormônios excitados esperando o bote de um bicho. O espanto. Sigo vivendo, no piloto automático das horas, dando um sorriso legítimo ao próximo, indo ali, indo aqui, mas sem entender o por que. Estou onde eu gostaria de estar. Isso é certo. E isso é ser feliz, me disseram, mas já não sei. Na procura por uma transcendência maior, me perco, afoita, logo na superfície. Me afogo no raso. São tantas palavras, emails, respostas, retornos, vozes ao longe, mensagens, telefonemas que tenho saudade da presença. Da dúvida. Do mistério. Coloco Ella pra tocar e imagino outra época, outras relações. Na banheira, misturo sentimentos de amor, languidez, cansaço e melancolia. Um corpo estendido em banho maria e consigo momentos de reflexão. As vezes vem um nó na garganta, uma vontade de gritar mãe, pega uma toalha?, mas lembro que estou sozinha no apartamento. Me perco em vestidos, sonhos, vinhos, dinheiro, promessas e trabalho. Todo dia, todo dia. 

No meio do engarrafamento, fantasio a plenitude.