Subjetividades

Wednesday, September 26

Intimidade

Longe de casa tem uma rua íngrime, de pedra e flamboyant. Rua calma, sem buzina nem sinal, grade ou prédio, rua com final. Para chegar, tem que subir até achar que acabou, aí tem que subir mais. Rua curva, reta torta de cara pro morro. Rua que na hora do almoço tem cheiro de comida e flor rosa no chão, e que à noite deixa a cigarra cantar. Rua em que se pode soltar os cachorros e as crianças, e aí tem que chamar para dentro porque tem sereno. Os gatos, esses, saem sem pedir licença. Rua em que se pode deixar o carro aberto com as compras dentro e namorar bastante do lado de fora. Rua boa, rua rara. Mas o melhor mesmo é aquele portãozinho branco, já meio enferrujado, que finje estar trancado, mas que basta colocar a mão com jeito que ele se abre para você. Aí dá vontade de ficar.

Monday, September 24

A Mulher da Capa

Um livro do Hopper e as coisas ficaram turvas mesmo. Charlotte Lovell nem apreciara direito e também não sabia ao certo o motivo da compra. Mais do que a necessidade de adquirir uma coisa nova com seu dinheiro foi querer embarcar na frase que o professor de literatura havia dito na semana passada: "é o pintor da solidão". O livro, assim que entrou em casa, fora aberto uma ou duas vezes, não mais do que isso, e logo pousado sobre a bancada. Alguns papéis soltos e caderninhos acumularam-se em cima, tornando quase invisível seu volume imponente de capa dura e edição comemorativa. Estava apagado, sem fazer alarde, como um de seus rostos tristes dentro de cafés. Estranhamente, não fora colocado junto aos outros livros de arte. Estava deslocado do grupo, em lugar esquisito, inapropriado. Hora ou outra, Charlotte se pegava pensando "tenho que tirar o Hopper dalí", mas acabava por não fazer. Foi que ontem, sem mais nem por quê, desafogou-o dos papéis e contas e deixou a mulher da capa brilhar e respirar outra vez. Dona de sí.

Monday, September 17

Trégua

Sublime é deitar na cama e te ouvir teclar letras lá embaixo, enquanto pego no sono, embalada pelo teu barulho. É perceber num susto tua presença no quarto, como um sonho bom, em que se desperta aflita e se depara com o calmante - tuas mãos geladas no meu corpo quente do edredom. Choque térmico sutil, somos dois sobreviventes protegidos pelo bunker.

Wednesday, September 12

A verdade sobre Mrs. Lovell

Entre vendedores de jornal e floristas ambulantes, Charlotte Lovell veio descendo com toda a força a Victoria Street, ofegante, já com suas maçãs do rosto coradas e o suéter ocre desabotoado. Foi quando cruzou a rua sem olhar, num ímpeto suicida e...

Eu poderia começar a história de Charlotte por aqui. Mas, no momento, prefiro falar de como ela estava se sentindo antes disso. Prefiro falar da imaterial efervescência que sente quando está próxima. De quem? Dele. Próxima. A proximidade é uma realidade prazerosa e, me arrisco a dizer, essencial para ela. Precisa disto para se sentir viva. É como se a presença dele, no ar que a cerca, lhe oxigenasse mais o cérebro. É. Charlotte fica em estado de alerta, pulsando idéias e fazendo planos para o futuro. Acontece que com a proximidade momentânea entre os dois também lhe vem um perigoso e arrebatador desejo. Como se não bastasse o limite apresentado. Charlotte quer mais. Muito mais. Cruelmente (e eu digo cruelmente porque é um sentimento tão esmagador que beira à injustiça consigo mesma), desliga o telefone e quer ligar outra vez. Quer ouvir sua voz não só mais uma, como todas as vezes. Quer se comprimir inteira para passar através do fio e encontrá-lo. Charlotte quer todos os dias, sempre, o exagero. Quer o cano estourado, o leite derramado e o vidro estilhaçado. Quer a cor vibrante e o grito agudo. O abraço que dói e o beijo que sangra, que suga, excita. Está farta da proximidade cautelosa, amena, doce, porém segura, passageira. Que provoca, pois provoca, mas não se estabelece porque não se assume. Ela quer as noites em claro e os olhos atentos. A dança rasgada do par no salão. Gargalhando. E mais, sempre mais. Quer as roupas no chão e o suor de piscina, poça no quarto. A unha quebrada e a falta de ar. Charlotte quer tê-lo como um corte cada vez mais profundo. E nessa incessante busca, tropeça nos próprios pés, claudicante e sem jeito, agoniada. Mordendo a isca do próprio anzol. Quer afogá-lo em seu próprio choro. Insatisfeita.